Entre nós – FamíliaS resistem
Atualmente o conceito de família tem sido alvo de muitos debates e disputas políticas entre grupos distintos.
O termo “família” foi formalizado no século XIX se referindo ao grupo biológico e social de um sujeito. Este modelo tradicional de uma família nuclear sofreu diversas interferências desde o final do século XIX, tais como: os novos lugares sócio-políticos das mulheres, os avanços tecnológicos das técnicas reprodutivas, o empobrecimento da população, avanço na defesa e garantia de direitos de crianças e adolescentes, índice de divórcios, famílias se constituindo em casamentos e/ou uniões estáveis pós o primeiro divórcio, mobilização e articulação política de homossexuais em prol de seus direitos de cidadania, enfrentamento à violência doméstica, individualização das relações, baixa taxa de fecundidade entre as classes sociais mais altas e médias, avanço nos debates sobre identidade e gênero.
Desde a segunda metade do século XX há uma tendência de utilizar como categorias de análise dos laços familiares, não apenas os laços biológicos, mas sim os de aproximação e convivência. Janet Carsten sugere em seus estudos, por exemplo, que se pense em termos de “conectividade” ou “parentesco” de modo que compreendamos quais elementos simbólicos seriam potentes em estabelecer vínculos afetivos e sociais profundos, verdadeiros e duradouros, além dos já institucionalizados como naturais (sangue, sêmen e leite materno).
Um efeito observado, nos últimos anos, desta permeabilidade entre o núcleo familiar e o seu entorno, é o modo como a figura masculina vêm desdobrando a paternidade de modos inéditos. Surpreendido com as rupturas das hierarquias de gênero, econômica e social no cotidiano doméstico, aos poucos o homem atual começa a transitar entre os papéis de masculino e de paternidade de modo bastante diferenciado do que os seus próprios pais o fizeram. Resgatam e buscam construir relações familiares em que não se restrinjam ao papel de provedores materiais ou reprodutores biológicos da história da família de que participam.
Todos estes elementos permitem ampliar a discussão acerca da diferença entre “função paterna e função materna”, “pai biológico e mãe biológica”. De modo simples, diremos que a função paterna pode ser eficientemente efetivada não apenas por outro homem que não o pai biológico, mas também por uma mulher ou algo que capture o desejo desta mãe e que inscreva a impossibilidade da relação simbiótica entre mãe e filho. Já a função materna é operada por aquela principal pessoa que se responsabiliza pelos cuidados e maternagem do bebê. O fundamental é que o bebê encontre lugar (particular e parcial) no desejo dos adultos que o recebem no mundo.
O modelo familiar tradicional não é garantidor de que seja o homem pai-biológico a desempenhar a função paterna e a mãe-biológica a de função materna. As novas configurações familiares (hetero, homo ou mães/pais sozinhas (os)) escancaram o fato de que não existem, em toda e qualquer família, linearidade e condições garantidoras da experiência subjetiva de tornar-se sujeito. Que o melhor caminho será, então, compreender que se trata sempre da “família que foi ou será possível inventarmos na parceria afetiva que estabelecermos com aqueles que fazem parte de nossa história”.
Ao entrelaçarmos esta atual concepção de grupo familiar à questão dos direitos de crianças e adolescentes, no Brasil desde a elaboração do Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA (1990) e do Plano Nacional de Promoção, Proteção e Defesa do Direito de Crianças e Adolescentes à Convivência Familiar e Comunitária – PNCFC (2006), percebemos que acolher a realidade da multiplicidade das famílias reais é questão mais grave do que as disputas sócio-históricas entre grupos tradicionalistas defendendo um modelo único de família; e grupos inovadores, que sem excluir o modelo anterior defendem a legitimidade social e afetiva dos novos arranjos.
Caso aqueles que trabalham com o ECA e o PNCFC permanecerem colados a um modelo irreal de família pauperizar-se-á os recursos de acolhimento e atendimento destes sujeitos, seja na área da Saúde, Educação, Assistência Social ou Justiça. Ora, em um caso corriqueiro (mas, não banal) uma criança que se torne alvo constante de chacotas entre os colegas em seu convívio social porque sua família não corresponda aos “padrões tradicionais” tidos como normais, é exposto a uma experiência de violência que poderá trazer prejuízos em seu desenvolvimento psíquico e social. Podemos perceber em uma situação tão “simples” a perpetuação da intolerância à diversidade e potencialização da violência, com a conivência e responsabilidade dos professores e adultos aí presentes.
O PNCFC terá tão maior poder de impedir a institucionalização quanto mais presente for a lógica da pluralidade familiar a tecer as relações em nossa sociedade.
Para além da práxis profissional ou de uma rede política do Estado, também é preciso considerar a importância de as próprias famílias se (re)pensarem não a partir de um único modelo familiar (das estórias idealizadas de seus antepassados), mas de sua realidade afetiva e concreta. Descolar-se de um modelo único e ideal de família é também descolar-se do desejo do Outro e permitir-se desejar por si sua própria família.
Com qual modelo social familiar as políticas públicas no Brasil deverão operar na organização de seus serviços é assunto da maior relevância e não deve servir de moeda de troca entre interesses outros que não o superior interesse da criança de que ela receba os melhores recusos afetivos e sociais.
Ignorar os processos históricos que permitiram ao Brasil avançar e se colocar no caminho de ser um país mais solidário e justo, no qual as pessoas tenham seus Direitos inalienáveis respeitados, seria um retrocesso lamentável e inadmissível.
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